Mont Serrat: o hospital do SUS onde se morre com dignidade e se vive até o fim

Mont Serrat: o hospital do SUS onde se morre com dignidade e se vive até o fim

 

          O Mont Serrat funciona onde antes era o hospital de infectologia Couto Maia em Salvador — Foto: Vitor Serrano/BBC News

 
Porto Velho, Rondônia — Em uma colina da Cidade Baixa, com vista privilegiada para o mar da Baía de Todos-os-Santos, funciona o primeiro hospital do Sistema Único de Saúde (SUS) inteiramente voltado aos cuidados paliativos no Brasil. O Hospital Estadual Mont Serrat, inaugurado no início de 2024, representa uma transformação silenciosa, porém profunda, na forma como o sistema público trata pacientes com doenças graves, incuráveis e em estágio terminal.

O casarão do século XIX, antigo Hospital Couto Maia, foi remodelado para receber pessoas que não mais se beneficiariam de tratamentos curativos agressivos, mas que merecem — e recebem — toda a atenção possível para viverem seus últimos dias com dignidade, conforto e humanidade.

Sem pronto-socorro, sem unidade de terapia intensiva (UTI) e sem salas de reanimação, o Mont Serrat foi estruturado a partir da filosofia dos cuidados paliativos, abordagem que prioriza o alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual do paciente, sem antecipar ou retardar a morte. Seu foco está no cuidado, não na cura.

O fim da vida como parte da vida

Para ser admitido no Mont Serrat, o paciente deve ser encaminhado por unidades públicas de saúde, após a identificação de um quadro clínico com expectativa de vida inferior a seis meses. Mais do que critérios médicos, a internação exige conversas difíceis entre profissionais, pacientes e famílias — diálogos sobre limites, escolhas e aceitação.

"Se eu coloco esse paciente para correr a maratona da UTI, eu só vou trazer sofrimento", explica a médica Karoline Apolônia, coordenadora do Núcleo de Cuidados Paliativos da Secretaria de Saúde da Bahia. “Aqui, sugerimos sentar-se para ver o pôr do sol e dizer ‘obrigado’, ‘eu te amo’, ‘desculpa’ e ‘adeus’.”

O hospital dispõe de 70 leitos, distribuídos em quatro pavilhões. No centro da unidade, simbolicamente, fica o necrotério e, ao lado, a Sala da Saudade, onde familiares se despedem de seus entes queridos em um ambiente acolhedor, com luz indireta, café, sofá e silêncio respeitoso.

Frases como “Um minuto de silêncio. Preciso ouvir meu coração cantar” — da médica Ana Cláudia Quintana Arantes, referência nacional em paliativismo — decoram as paredes do hospital. Ali, mesmo a morte é tratada com reverência.

Humanização em cada detalhe

No Mont Serrat, a morte não é tabu, e o paciente não é reduzido a um diagnóstico. A equipe multiprofissional — formada por 430 colaboradores, incluindo médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, técnicos e funcionários da limpeza — recebe capacitação sobre empatia e escuta ativa.

“Me perguntaram se meu pai gostava de música, de futebol, se queria fazer a barba. Isso nos trouxe paz”, relatou Ayrton Júnior, filho de um dos pacientes oncológicos internados.

A cada novo paciente, repete-se a mesma pergunta: “O que você quer neste tempo?” A resposta pode ser tão simples quanto tomar um copo d’água no aniversário ou assistir ao pôr do sol. Para muitos, como a dona de casa Helita Maria da Silva, de 86 anos, o hospital representa um “lugar de princesa”, onde ela diz ser tratada como um bebê.

O objetivo não é prolongar artificialmente a vida, mas oferecer o melhor cuidado até o último instante — inclusive para quem pode retornar para casa. “O paciente recebe alta conhecendo sua doença, mas conectado com o que é sagrado: a família”, explica a médica Yanne Amorim, líder do hospital.

Uma resposta a uma demanda crescente

A abertura do Mont Serrat é uma resposta direta a um cenário demográfico em transformação. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a proporção de idosos no Brasil saltou de 8,7% em 2000 para 15,6% em 2023. A estimativa é que, em 2070, quase 40% da população brasileira tenha mais de 60 anos.

Diante dessa realidade, os cuidados paliativos se mostram não apenas necessários, mas urgentes. Ainda assim, o Mont Serrat segue sendo, até o momento, a única unidade do SUS voltada exclusivamente a esse tipo de atendimento.

A política pública nacional só começou a se consolidar recentemente. Em maio de 2024, o Ministério da Saúde lançou a primeira Política Nacional de Cuidados Paliativos. Em paralelo, desde 2023, a disciplina tornou-se obrigatória nas faculdades de medicina brasileiras.

“O medo era de que não conseguíssemos lotar o hospital, mas hoje operamos perto da ocupação máxima diariamente”, afirma Karoline.

Viver até o fim, morrer com sentido

Donizete Santana, 33 anos, chegou ao hospital em estado terminal, após um diagnóstico tardio de câncer no cérebro. Segundo sua companheira, Ângela Teixeira, ele chegou "morto". Mas reviveu nos últimos dias: se alimentou, riu, descansou. "Foi um fim feliz. Sem dor, sem grito, sem choro", disse ela.

Casos como o de Donizete, Everaldo, Marina e tantos outros demonstram que morrer com dignidade não é um luxo, mas um direito. E que, mesmo na despedida, é possível encontrar beleza, gratidão e paz.

No Mont Serrat, o mar é o maior altar. O píer ao fundo do hospital recebe macas no fim da tarde, para que os pacientes, muitos deles em seus últimos momentos, contemplem o pôr do sol. Ali, entre a brisa e o silêncio, o cuidado se transforma em presença.

Como disse a médica Karoline: “Se não nos organizarmos como sistema, não conseguiremos cuidar dessas pessoas que estão envelhecendo.”


da redação FM

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